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quarta-feira, março 2

O Sapo, o Carniça e o poder

A pintura azul clara da parede realça a fotografia dos meus pais no dia do casamento. A imagem, pendurada, esconde o furo de uma bala que encontrou bem ali, no meio da parede da sala, um lugar.
A fotografia costumava ficar em cima da TV. Mas, no último tiroteio daqui do morro, nossa casa ficou exatamente entre a facção de Fábio, o Sapo, e a turma de Dinho, o Caolho. Éramos escudos dos soldados do Sapo. Tivemos sorte – eu e minha mãe – de não morrermos. Ela se trancou no banheiro e deitou perto da privada e da pia. E eu, corri. Fui para o asfalto.
As pessoas acharam covardia de minha parte, fugir e deixar minha mãe. Mas eu sabia que no banheiro ela ia ficar bem. E, pô, eu preciso continuar vivo e trabalhar.
Aqui no morro não sou ninguém. Sou um merda até os soldadinhos mais furrecas, esses que soltam pipa, ficam de butuca para avisar quando os homens chegam – e não devem ter nem 10 anos – me sacaneiam. E eu, pataqueopariu, não posso fazer nada. E os merdinhas se acham...
A primeira e única vez que trabalhei para a turma do Sapo, tinha uns 12 anos. A pipa enrolou e os caras não sabiam se os homi tinham ou não chegado. Levei tanta porrada na orelha que parecia uma couve-flor de tão grande que ficou.
Vai ser evangélico, ô Carniça. Falaram várias vezes isso para mim. Até que nem o pessoal da igreja me quis. Incendiei o barraco que servia para as missas quando fui o encarregado de acender as velas.
Aqui no morro posso não ser ninguém. Mas eu tenho um emprego e lá eu sou foda. É, eu sou foda. É isso.
Sou segurança de um prédio comercial. Não uso armas – só um sistema de comunicação com os meus outros colegas. E nem conseguiria usar uma arma, apesar de sonhar em ter uma. Bom, é um prédio desses de bacana. Vários funcionários de empresas de gringos, diretores, presidentes. Gente com grana circula por lá. E eu sou encarregado da catraca. Quem vai, quem vem, se chega alguém com muita tralha e tenho que liberar a portinha extra, essas coisas. É muita responsabilidade. E poder. Se o sujeito passa o crachá e não abre, tenho o poder de liberar ou não o cara. Se não ‘tô com vontade, a pessoa tem que ir para a recepção. E a fila é grande.... Ele se fode.
Bom, aí vai depender do meu humor. Mas geralmente eu mando o cara para a fila. "Senhor, por favor, dirija-se à recepção." Nossa, isso é muito bom. E foi a primeira frase que aprendi a falar com esse "se". Outro dia mandei um todo poderoso de uma dessas empresas. Ele era gringo, ‘tava cheio de malas e eu barrei ele. Disse que tava sem o crachá, essas baboseiras. Mas eu cumpri a lei. Sabe, vejo o homem todos os dias. Sei muito bem que ele trabalha lá. E ele até que me cumprimenta. Dá bom dia, boa tarde, até amanhã, Zé.
Mas eu não resisto. "Senhor, dirija-se a recepção" Hahahahahahahahahahahahahah!!!!
Qual é porra, lá eu sou o tal.
Não posso deixar essa oportunidade . É muito bom. "Senhor, resolva na recepção". "Mas tem uma fila enorme, Zé. Libera, vai."
"Não dá. São ordens." E eu ainda dou um sorrizinho.
A verdade é que ninguém se interessa se o cara entra ou não de crachá. Mas eu gosto disso. Eu sou foda!!!!

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